domingo, 26 de agosto de 2012

A MENINA DOS OLHOS LINDOS

Eram azuis como um céu de um quente domingo. Eram normais em diâmetro, pela perfeição da natureza. Eram ainda mais absolutos que as sete maravilhas do mundo.

Toda vez que eu passava em sua rua ela me fitava, sem expressão no rosto. Porém nos olhos havia um pingo de tristeza que escorria pelo ambiente e que me enchia de ternura e de curiosidade. Ela ficava sempre ali, sozinha, na sua janela, todos os dias.

Um dia tomei coragem e parei. Perguntei seu nome, após congratulá-la. Seus lábios sorriram, mas só depois que ouvira o som da minha voz. E respondeu-me então seu nome, que era o nome mais doce que os meus ouvidos tiveram o aprazível prazer de ouvir. Sua voz era como se fosse de pelica, só que ainda mais macia. Seus cabelos lisos e ruivos contrastavam perfeitamente com sua adorável feição.

Mas algo me chamava ainda mais atenção, depois de sua beleza angelical. Era o seu olhar. Muito embora estivessem astutos, estavam vagos e sem direção. E não paravam de mover-se. Piscavam mais que o normal. Foi só então quando percebi. Lucélia não enxergava. Nos seus olhos correram um filete de lágrima, mas não antes dos meus.

sexta-feira, 13 de julho de 2012

O COMPADRE DA MORTE

UM lavrador pobre tinha tantos filhos que não sabia a quem convidar para padrinho dos recém-nascidos. Quási todos na aldeia eram com padres dele. Nascendo-lhe mais um filho, fico atrapalhado para saber quem levasse a criança ao batismo. Estava pensando no caso quando passou por êle um homem muito alto, magro, vestido de branco, que parou e o cumprimentou amavelmente. O lavrador perguntou se êle aceitava ser o padrinho do seu filho mais moço.

— Sabes quem sou eu?

— Naô senhor! Mas me parece ser homem honrado e bom!

— Sou a Morte e aceito ser teu compadre. Acompanhou o lavrador à igreja, ficando seu

compadre. Quando voltaram a casa, a Morte disse:

— Escute lá. Não tenho dinheiro nem fazenda para o meu afilhado, mas posso fazer o meu compadre tornar-se um homem rico.

— Como será isso, meu compadre?

— Preste atenção! Diga a todos que é medico e vá atender aos doentes. Quando lá chegar me verá. Se eu estiver no lado da cabeça do enfermo, dê o que quiser e êle curar-se-á, mas se eu estiver aos pés da cama, o homem’está perdido.

— Pois é caso entendido, meu compadre.

Começou o lavrador, que era desempenado e afoito, a dizer-se curandeiro e visitar doentes por toda a visinhança. Quando via a Morte perto da cabeceira do doente, punha-o sadio em poucos dias. Quando via a Morte aos pés do enfermo, receitava umas águas simples, cobrava o dinheiro e se ia embora, desenganando a todos.

Ganhou fama e proveitos crescidos, ficando rico e conhecido em toda a parte.

Já muito velho, o curandeiro foi chamado por um homem muito poderoso e rico. Apesar de relutar, dizendo-se cansado e não mais podendo aceitar consultas, foi obrigado a pôr-se numa carruagem e ir. Lá chegando, logo que olhou para o quarto do ricaço, avistou o compadre Morte, bem sentado aos pés da cama. A família do enfermo prometia os castelos de Espanha se o chefe recobrasse a saúde. O curandeiro imaginou um plano de burlar o pacto com a Morte e ganhar mais aquela fortuna. Mandou voltar o leito, de maneira a ficar os pés onde estava a cabeça e esta onde estavam os pés. A Morte, assim que voltearam a cama, foi-se embora, sem dizer uma só palavra.

O curandeiro recebeu uma gorda quantia e voltou para casa satisfeito.

Anos depois, a Morte veio visitá-lo e lhe disse: — Meu compadre, de hoje a um ano virei buscá-lo porque deve ter chegado o dia de sua viagem…

O Curandeiro ficou espavorido com o anúncio. Para enganar a Morte mais uma vez, quando se aproximou o dia fatal, pintou os cabelos de preto, pôs umas barbas retintas, convidou uns amigos e começou a beber e a rir, como se fosse outra pessoa.

Chegou a Morte e, não o vendo, perguntou pelo seu compadre. Todos os convidados responderam que o dono da casa não estava e nem sabiam quando êle voltaria.

— Ora, ora — monologou a Morte, desaponta da — como não posso perder meu tempo nem a mi nha viagem, vou levar esse barbadão bebedor…

E levou com ela o seu compadre.

    É conto muito popular em vários folclores europeus. Sua origem não portuguesa denuncia-se pela Morte aparecer no masculino. O mesmo ocorre na versão da Baixa Bretanha, recolhida por F. M. Luzel, L’Hommem Juste, onde a Morte é masculina, ann Anhou em bretão, obrigando o tradutor francês a escrever Trepas em vez de Mort, Legendes Chrétiennes de la Basse-Bretagne, Paris, 1881. Há o mesmo processo de burlar a Morte. No Brasil, Gustavo Barroso registou uma variante do Ceará, A lenda da Morte, onde esta, libertada de uma armadilha, o mondéu, prometeu 120 anos de vida robusta a um sertanejo que, pelando-se todo, para fugir ao pagamento da cláusula, foi carregado por ela, dizendo: levo em, lugar dele este pecado dançador! p. 708, Ao som da Viola, Rio de Janeiro, 1921. Mt. 332 de Aarne-Thompson, Oodfather Death. Registado em Bolte e Po-livka, 1, 377 dos estudos sobre os contos dos irmãos Grimm, onde figura sob o n.° 44, R. T. Christiansen, Danske Studier, 71, na coleção dos contos da Sicília de Laura Gonzebach, n.° 19, nos russos de Afanasiev, n.° 9, do 1.°, conhecido na literatura oral da Estônia, Filândia, Lapônia, Dinamarca, Noruega, Flandres, etc. apud, Stith Thompson, Antti Aarne, The Types of the Folk-Tale, p. 5’9- 60. (Cascudo)

quarta-feira, 16 de maio de 2012

O MISTÉRIO DO GAMBÁ GIGANTE

(Arnaldo Jabor)



Há seis anos escrevi um artigo que repito, em parte, pois lembro emocionado que dali saiu o desejo profundo de fazer o filme “A suprema Felicidade”, que estou finalizando agora.

Era um artigo em que meu filho, então com 4 anos, perguntava sobre meu passado. Lembro que pensei: "Acho que vou filmar coisas que vi e vivi na adolescência; acho que talvez haja nisso uma verdade maior do que buscar teses ou certezas sobre a vida hoje"... Não é um filme biográfico, nem de "época". Ao contrário, é um filme que tenta captar o que há de permanente no curso dos anos que passaram. Como disse o Fellini, "a única objetividade que conheço é a subjetividade".

Hoje, só há um enorme presente e um passado que nos parece uma decadência em preto e branco. Perdemos a pista do que éramos ou até mesmo do que pensávamos ser.

O artigo era mais ou menos assim: "Antigamente, quando eu era pequenininho...", com essa frase mágica eu cortava qualquer choro de meu filhinho, qualquer bagunça em curso e ele subia em meu colo de olhos abertos, lágrima secando, largando a geleca trêmula no chão, para ouvir as estórias de meu passado.

Papai, antigamente não tinha DVD? Não. Não tinha televisão? TV estava começando, tinha mais rádio. Tinha Homem-Aranha? Acho que não; mas, tinha o Tocha Humana, tinha o Homem de Borracha tinha Super-Homem, mas só apareciam no gibi.

O que é "gibi"? “Revista de quadrinhos - respondo, mas tinha Príncipe Submarino, que hoje não tem mais, um super-herói que lutava no fundo do mar contra os polvos malvados e as lulas venenosas”. “E ele não morria afogado?” “Não, meu filho, porque ele era meio "peixe" também. “E pescavam ele?” “É... tinha uns homens malvados que queriam pescar ele, mas ele era craque”.

“E tinha você, antigamente?” “Eu?” “É... você, com seu papai e sua mamãe?” “É, filho, tinha... tinha eu... mas eu era pequenininho também... olha aqui no retrato”. “Por que você está chorando no colo do seu avô? Não sei; eu acho que já era vocação, ha! ha!”

“Quem eram seus amigos?” “Bem... tinha o Bertoldo, o Bertoldinho e o Cacasseno (personagens de um livro de estórias) e também o meu amigo Albertinho Fortuna... (não sei por que transformei esse cantor popular dos anos 50 num "amigo de infância"... Sempre achei graça nesse nome: "Albertinho Fortuna"...).

“E vocês caçavam o gambá gigante?” “Sim; a gente ia lá na floresta, cada um com um pau na mão e subíamos até a caverna do gambá gigante, que ficava no alto do Corcovado”. “Lá onde tem o "Quisto Redentor"?” “Isso, filhinho; a gente ia subindo a pé porque antigamente não tinha o trenzinho e, quando chegávamos perto da casa do gambá gigante, a gente sentia o cheiro ...argghhhh... era um cheiro horroroso e aí não adiantava nem bater nele; a gente gritava de fora, tapando o nariz: "Gambá gigante! Sai daí!!" Aí, quando o gambá saía, zangado, porque estava dormindo e ia atacar a gente, o Albertinho Fortuna pegava um vidro de perfume Coty e tacava nele e aí o gambá gigante ficava cheirozinho e ficava amigo da gente... E pronto... E aí, todo mundo ia dormir, feito você, agora..."

E aí, enquanto meu filhinho começava a dormir, pensando no gambá cheiroso, eu pensei em sua pergunta profunda: "Pai, tinha você, antigamente?"

Bem? - respondo para mim mesmo - antigamente, tinha eu, outro "eu", diferente deste casca-grossa de hoje ...tinha nossa casinha de subúrbio, pequena, com quintal, galinha e mangueira e, fora de casa, tinha minha curta paisagem de menino: rua, poste, fogueira no capinzal, a luz do carbureto do pipoqueiro, a luz nas poças com a lua tremendo na água, balões coloridos no céu, trêmulos de lanterninhas, balões-tangerina, balões-charuto. De dia, tinha o sol que era meu, a chuva que era minha, tinha as nuvens-girafa, as nuvens-camelo, que eu olhava deitado no chão onde as formigas eram minhas, com meus caramujos nas folhas deslizando em sua gosminha madre-pérola...

Uma vez, houve um grande eclipse, e eu fiquei olhando minha família olhando o sol negro, através de cacos de vidro escuros e, eu me lembro, tive a sensação dolorida de que a casa, papai de uniforme de capitão, minha irmãzinha chorando, a triste empregada com pano branco na cabeça, as árvores, as galinhas, tudo ia passar, e que nós íamos nos apagar também, como o sol, tudo indo para longe, como os urubus, mais longe, quase no infinito, na bruma.

Nas ruas, tinha uma luz mortiça nas janelas das casas, com o som do rádio com as novelas deprimentes e o seriado do "Capitão Atlas", tinha os amores impossíveis, os suicídios com guaraná e formicida, as luas de mel fracassadas, as TVs em preto e branco, tinha um Brasil mais micha, cambaio, mas bem mais brasileiro que hoje, em seu caminho que o Golpe de 64 interrompeu e que, agora, essa mania vertiginosa de "primeiro mundo global" acabou matando a tapa. Hoje, essa pobreza é disfarçada pela falsa exuberância de um progresso que fabrica ratos verdes com genes de "águas-vivas", mas não consegue diminuir a miséria e a destruição da natureza.

E eu penso: "Antigamente, filho, não tinha esse povo arrebentado, dividido, tonto. Era uma pobreza mais pobre, mas menos - como direi? - menos insolúvel. Tinha uma nacionalidade ilusória, sim, com o povo apinhado nos bondes, mais burro que hoje, sem defesas, mas ainda havia formas possíveis de consertar, apesar de acharmos que bastava o grito das massas e a vontade de justiça para que um novo país se realizasse." Em 63, não sabíamos ainda que a democracia custaria tanto. Havia um "vazio" no Brasil; mas era um vazio que dava idéia de que ia surgir uma sociedade nova, mesmo num futuro cheio de urubus.

E aí, eu me perguntei, vendo meu filhinho dormir: "Como fazer, meu filho, para restaurar aquela idéia de Brasil, sem fugir das regras implacáveis da vertigem global?" Eu não sabia e não sei ainda. Nem ele - sonhando com o gambá gigante, sob a voz melodiosa de Albertinho Fortuna, cantando por cima do tempo.

quinta-feira, 19 de abril de 2012

O PAMPA

José de Alencar



Como são melancólicas e solenes, ao pino do sol, as vastas campinas que cingem as margens do Uruguai e seus afluentes! A savana se desfralda a perder de vista, ondulando pelas sangas e coxilhas que figuram as flutuações das vagas nesse verde oceano. Mais profunda parece aqui a solidão, e mais pavorosa, do que na imensidade dos mares.

É o mesmo ermo, porém selado pela imobilidade, e como que estupefato ante a majestade do firmamento.

Raro corta o espaço, cheio de luz, um pássaro erradio, demandando a sombra, longe na restinga de mato que borda as orlas de algum arroio. A trecho passa o poldro bravio, desgarrado do magote; ei-lo que se vai retouçando alegremente babujar a grama do próximo banhado.

No seio das ondas o nauta sente-se isolado; é o átomo envolto numa dobra do infinito. A âmbula imensa tem só duas faces convexas, o mar e o céu. Mas em ambas a cena é vivaz e palpitante. As ondas se agitam em constante flutuação; têm uma voz, murmuram. No firmamento as nuvens cambiam a cada instante ao sopro do vento; há nelas uma fisionomia, um gesto. A tela oceânica, sempre majestosa e esplêndida, ressumbra possante vitalidade. O mesmo pego, insondável abismo, exubera de força criadora; miríades de animais o povoam, que surgem à flor d’água.

O pampa ao contrário é o pasmo, o torpor da natureza. O viandante perdido na imensa planície, fica mais que isolado, fica opresso. Em torno dele faz-se o vácuo: súbita paralisia invade o espaço, que pesa sobre o homem como lívida mortalha. Lavor de jaspe, embutido na lâmina azul do céu, é a nuvem. O chão semelha a vasta lápida musgosa de extenso pavimento. Por toda a parte a imutabilidade. Nem um bafo para que essa natureza palpite; nem um rumor que simule o balbuciar do deserto. Pasmosa inanição da vida no seio de um alúvio de luz!

O pampa é a pátria do tufão. Aí, nas estepes nuas, impera o rei dos ventos. Para a fúria dos elementos inventou o Criador as rijezas cadavéricas da natureza. Diante da vaga impetuosa colocou o rochedo; como leito de furacão estendeu pela terra as infindas savanas da América e os ardentes areais da África.

Arroja-se o furacão pelas vastas planícies; espoja-se nelas como o potro indômito; convole a terra e o céu em espesso turbilhão. Afinal a natureza entra em repouso; serena a tempestade; queda-se o deserto, como dantes plácido e inalterável. É a mesma face impassível; não há ali sorriso, nem ruga. Passou a borrasca, mas não ficaram vestígios. A savana permanece como foi ontem, como há de ser amanhã, até o dia em que o verme homem corroer essa crosta secular do deserto.

Ao pôr do sol perde o pampa os toques ardentes da luz meridional. As grandes sombras, que não interceptam montes nem selvas, desdobram-se lentamente pelo campo fora. É então que assenta perfeitamente na imensa planície o nome castelhano. A savana figura realmente em vasto lençol desfraldado por sobre a terra, e velando a virgem natureza americana.

Essa fisionomia crepuscular do deserto é suave nos primeiros momentos; mas logo após ressumbra tão funda tristeza que estringe a alma. Parece que o vasto e imenso orbe cerra-se e vai minguando a ponto de espremer o coração.

Cada região da terra tem uma alma sua, raio criador que lhe imprime o cunho da originalidade. A natureza infiltra em todos os seres que ela gera e nutre aquela seiva própria; e forma assim uma família na grande sociedade universal.

Quantos seres habitam as estepes americanas, sejam homem, animal ou planta, inspiram nelas uma alma pampa. Tem grandes virtudes essa alma. A coragem, a sobriedade, a rapidez são indígenas da savana.

No seio dessa profunda solidão, onde não há guarida para defesa, nem sombra para abrigo, é preciso afrontar o deserto com intrepidez, sofrer as privações com paciência, e suprimir as distâncias pela velocidade.

Até a árvore solitária que se ergue no meio dos pampas é tipo dessas virtudes. Seu aspecto tem o que quer que seja de arrojado e destemido; naquele tronco derreado, naqueles galhos convulsos, na folhagem desgrenhada, há uma atitude atlética. Logo se conhece que a árvore já lutou à sua nutrição. A árvore é sóbria e feita às inclemências do sol abrasador. Veio de longe a semente; trouxe-a o tufão nas asas e atirou-a ali, onde medrou. É uma planta emigrante.

Como a árvore, são a ema, o touro, o corcel, todos os filhos bravios da savana. Nenhum ente, porém, inspira mais energicamente a alma pampa do que o homem, o gaúcho. De cada ser que povoa o deserto, toma ele o melhor; tem a velocidade da ema ou da corça; os brios do corcel e a veemência do touro. O coração, fê-lo a natureza franco e descortinado como a vasta coxilha; a paixão que o agita lembra os ímpetos do furacão; o mesmo bramido, a mesma pujança. A esse turbilhão do sentimento era indispensável uma amplitude de coração, imensa como a savana.

Tal é o pampa.

Esta palavra originária da língua quíchua significa simplesmente o plaino; mas sob a fria expressão do vocábulo está viva e palpitante a idéia. Pronunciai o nome, com o povo que o inventou. Não vedes no som cheio da voz, que reboa e se vai propagando expirar no vago, a imagem fiel da savana a dilatar-se por horizontes infindos? Não ouvis nessa majestosa onomatopéia repercutir a surdina profunda e merencória da vasta solidão?

Nas margens do Uruguai, onde a civilização já babujou a virgindade primitiva dessas regiões, perdeu o pampa seu belo nome americano. O gaúcho, habitante da savana, dá-lhe o nome de campanha.

terça-feira, 20 de março de 2012

O BALÃO DE BENNY

Michael Cody



Benny tinha setenta anos quando morreu subitamente de câncer, em Wilmette, Illinois. Como sua neta de dez anos, Rachel, nunca teve a oportunidade de dizer adeus, ela chorou durante vários dias. Mas depois de receber um grande balão vermelho em uma festa de aniversário, voltou para casa com uma idéia – uma carta para o vovô Benny, enviada para o céu em seu balão.

A mãe de Rachel não teve coragem de dizer não e observou com lágrimas nos olhos o frágil balão subir por entre as árvores que cercavam o jardim e desaparecer.

Dois meses depois, Rachel recebeu esta carta com carimbo do correio de uma cidade a 900 quilômetros de distância, na Pensilvânia:



"Querida Rachel,

Vovô Benny recebeu a sua carta. Ele realmente a adorou. Por favor, entenda que coisas materiais não podem ficar no céu, por isso tiveram que mandar o balão de volta para a Terra – eles só guardam os pensamentos, as lembranças, o amor e coisas desse tipo no céu.

Rachel, sempre que você pensar no vovô Benny, ele saberá e estará muito perto, com um amor enorme por você.



Sinceramente,
Bob Anderson

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

A SOPA DE PEDRA

Era uma vez um viajante que andava de país em país, de terra em terra. Um dia quando estava de passagem por uma pequena aldeia reparou que a sua comida tinha acabado, e já estava ficando com muita fome.

Foi andando de um lado para o outro a pensar numa forma de arranjar comida. Tinha muita vergonha de pedir, mas parecia que daquela vez não tinha outro jeito.

Enquanto ia andando, deu um pontapé numa pequena pedra que estava no chão; era uma pedra muito lisa e bonita, foi então que teve uma idéia para conseguir almoçar sem sentir tanta vergonha.

Bateu à porta de uma casa, que parecia ser de um grande agricultor da região.

Quando o dono da casa abriu a porta o viajante disse-lhe:

– Bom dia senhor, eu sou viajante e trago comigo uma pedra mágica capaz de fazer a melhor sopa do mundo, quer provar?

Ao dizer isto, retirou do bolso uma pedra muito lisa e redonda. Era parecida com outras que o agricultor conhecia mas, como gostava muito de sopa, decidiu provar a tal melhor sopa do mundo.

O viajante entrou e pediu uma panela grande com água e um pouco de sal; colocaram a panela no fogo e a pedra lá dentro. Quando a água começou a ferver o viajante provou e disse:

– Está quase pronta, mas ficará ainda melhor se lhe pusermos umas batatas.

– Oh homem! Não seja por isso, eu sou um grande agricultor desta região, batatas é coisa que não me falta.

– Obrigado, assim a sopa vai ficar muito melhor.

Passado mais algum tempo voltou a provar.

– Está quase..., mas ficava ainda melhor se lhe pusermos umas cenouras.

O agricultor lá foi buscar as melhores cenouras que tinha em casa.

Após provar várias vezes o viajante foi pedindo outros vegetais, como couve, cebola, feijão, entre outros. Quando a sopa já estava rica em vegetais, o viajante disse:

– Caro amigo, a sopa está ficando uma delícia!

O agricultor mal podia esperar para provar a sopa - coisa que ele adora.

O viajante após provar mais uma vez pediu:

– Oh amigo esta sopa ficava ainda melhor se lhe pusermos um pouco de carne de porco, tem ai alguma coisa? Chouriço, por exemplo.

– Já lhe disse que sou agricultor, coisas dessas não faltam cá em casa.

Mais uma vez foram colocando algumas carnes na sopa.

Provou mais uma vez e disse com um grande sorriso:

– Está pronta!!!

– Já não era sem tempo, vamos lá provar essa sopa

O viajante serviu a sopa para os dois. Depois de a provar, o agricultor exclamou:

– Tinha razão, é mesmo a melhor sopa que já comi até hoje, essa sua pedra é realmente mágica. Não quer vendê-la?

– Não está à venda, é muito valiosa para mim, foi-me oferecida por um mago de um país distante.

– Muito bem, obrigado do mesmo jeito por me ter deixado provar esta sopa.

– Obrigado eu.

Despediram-se. O viajante continuou a sua viagem por outras terras, utilizou várias vezes a sua pedra mágica e assim conseguiu comer sem ter vergonha de pedir e foi desta forma que a receita da sopa de pedra foi passando de terra em terra e hoje ainda a podemos provar em vários locais, com diferentes receitas.



Do folclore mundial

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

O DUPLO

            Coelho Neto
O DUPLO

- Temos, então, um caso de desdobramento da personalidade do meu querido amigo?

- Quem te disse ?

- Laura.

Benito Soares ficou um momento encarado no coronel. Por fim, meneando com a cabeça, desabafou contrariando:

- Laura... Laura faz mal em andar contando essa história por aí.

- Que tem?

- Ora! Que tem... Há dias, em casa do Leivas, pouco faltou para que eu rompesse com o Malveiro, a propósito do que se deu comigo, e que lhe contaram não sei onde, entendeu que me devia tomar à sua conta, expondo-me à risota de uns petimetres ridículos que o cercam. Fiz-lhe sentir que não me agradavam os seus remoques e deixei-o com os tais mocinhos, que lhe aplaudem os versos quando ele lhes paga a cerveja ou o chá, aí por essas casas.

Não ando a pregar doutrinas: não sou sectário, não freqüento sessões nem leio, sequer, as tais obras de propaganda que pretendem revelar o que se passa no Além da morte. Sou religioso à velha moda, observando a doutrina que aprendi, ainda que não ande beatamente pelas igrejas de círio e ripanço. Cumpro rigorosamente os Mandamentos e os marcos que limitam a minha Crença são os quatro evangelistas; fora de tais "termos" não dou um passo - nem para diante, seguindo os reformadores, que pregam o novo Credo, nem para trás acercando-me de altares pagãos ou adorando ídolos grosseiros. Onde me deixaram meus pais, que foram os meus iniciadores, aí ficarei até morrer.

Contei a Laura a tal história como contaria um acidente qualquer de rua, sem cuidar que ela fizesse do caso assunto de palestra nos salões que freqüenta.

O resultado disso é o que se está dando comigo, aborrecendo-me, irritando-me, porque desconfio de todos os olhares e, se alguém sorri à minha passagem, imaginando que comenta o meu caso, fico logo pelos cabelos.

- Mas, afinal, como foi? Comigo podes abrir-te sem receio. Sabes que, além de discreto, não sou dos que zombam do sobrenatural. Os fatos ai estão: produzem-se, reproduzem-se e, se ninguém os explica, muitos dão deles testemunho e provas e eles, efetivamente, manifestam-se visível, sensivelmente.

Os cépticos encolhem os ombros sorrindo, os adversários, à falta de argumentos com que os destruam, bradam contra os que os apregoam. A verdade, porém, é que nos achamos diante de uma porta de bronze que nos veda um grande mistério, ou melhor - Mistério.

Mas já é muito havermos chegado à porta. Sente-se que além dos túmulos, que são limiares de outro mundo, há alguma coisa que... ninguém sabe o que é.

A porta mantém-se fechada, deixando apenas passar um rastinho de luz no qual flutuam indícios, revelações vagas, como átomos nos raios de sol. Mas deixemos as dissertações para mais tarde. Vamos ao teu caso. Foi, então, um desdobramento da tua personalidade...?

- Não sei que foi. Digo-te apenas que passei os minutos mais angustiosos da minha vida.

Saindo do Alvear, subi vagarosamente a Avenida até a Tabacaria Londres, onde comprei charutos e estive um instante a conversar com o Borges sobre coisas da vida.

O Borges anda com a mania dos Marcos; possuí não sei quantos milhões, e espera que a Alemanha recomponha as finanças para aturdir-nos, a nós e ao mundo, com a vida maravilhosa que tem toda em plano. O que me está parecendo é que o pobre está com o juízo em pior estado de que as finanças germânicas. Enfim, deixando o Borges, dirigi-me, sem mais empeços, para a Galeria, onde comprei os jornais.

O meu bonde apareceu logo e logo foi assaltado. Não consegui uma ponta e fiquei entalado no banco da frente, entre um obeso cavalheiro ruivo e uma matrona anafada, dessas que se esparralham.

O bonde partiu e, oprimido pelas duas enxúndias, dificilmente consegui abrir um dos jornais. Pus-me a ler, ou antes: a olhar a página porque, em verdade, a minha atenção vagueava, aí por longe. Os olhos passeavam pelas palavras, sem que o espírito lhe colhesse o sentido, como deve acontecer com os aviadores que vêem, de muito alto, todo o panorama de uma cidade em mancha, sem distinguir os bairros, as ruas, os edifícios, apenas o alvejamento das casas, a placa cintilante do mar, o relevo dos montes. Sentia-me atraído por alguma coisa. Voltei página do jornal - a mesma confusão, o mesmo empastamento. Foi então, que levantei a cabeça, olhando em frente e vi, meu amigo, vi...!

- Viste...?

- A mim mesmo, a mim! Eu, eu em pessoa sentado defronte de mim, no banco da frente, que dá costas à plataforma. Era eu, eu! como refletido em um espelho, e certo estremeci vivamente, incomodando os meus companheiros laterais, porque ambos voltaram-se encarando-se de má sombra.

Pasmado, sem poder desfitar os olhos daquele reflexo, que era, em tudo, eu: nas feições, na atitude, no trajo, não parecido, mas reproduzido em exteriorização, pensei de mim comigo:

"Se tal se dá é que o meu espírito, alma, ou lá o que seja, exalou-se de mim, deixando-me apenas o corpo, como a borboleta deixa o casulo em que se opera a metamorfose. Assim, pois, o que ali se achava, no bonde, era uma massa inerte, sustida pelos dois corpanzis que ladeavam. E, em menos de um segundo, vi todo o horror da cena, que seria cômica, se não fosse trágica, que se daria com a retirada de um daqueles gordos.

Desamparado, o meu corpo vazio tombaria. Dar-se-ia, então, o alarma: todos os passageiros de pé, a verificação da minha morte, o reconhecimento do meu cadáver pelo condutor e a minha entrada fúnebre em casa".

Que angústia, meu amigo ! E o outro lá estava em frente a olhar-me, como se gozasse com o meu sofrimento. Lembrei-me, então, de fazer um movimento com os braços, com as mãos; o receio, porém, de ser a minha vontade atendida pelos nervos fez-me hesitar. Mas eu pensava, raciocinava. Sim, mas o corpo não esfria de repente e tais pensamentos e tais raciocínios podiam ser ainda restos de energia d'alma que me houvessem ficado nas células, como fica nas polias o movimento ainda depois do motor parado.

Sentia-me rígido, petrificado e tinha a sensação de frio, como se me fosse congelando, a começar pelos pés. E o outro sempre encarado em mim.

Fiz um esforço supremo como se quisesse levantar o bonde com todos os passageiros que ele continha e, arremessando os braços, pus-me de pé.

A matrona levantou a cabeça com atrevimento e olhou-me com tal carranca que eu pensei que me fosse agatafunhar ou, com a força dos braços, que eram duas coxas, atirar-me do bonde abaixo e o ruivo roncou ameaçadoramente, aprumando a cabeçorra quadrada de ulano com entono de desafio.

Mas que me importavam ameaças A minha alegria era grande e tornou-se maior quando, ao procurar com os olhos o meu outro "eu", não o vi mais.

Teria descido? Não ! Não descera. Tornara a mim, atraído pela vontade, na ânsia de viver, no desespero em que me vi, só comparável ao de alguém que, indo ao fundo, sem saber nadar, debate-se agoniadamente conseguindo elevar-se à tona e gritar a socorro.

E tudo isso, meu amigo, não durou, talvez, um minuto e eu guardo de tais instantes a impressão penosa de um século de sofrimento.

Eis o meu caso, o caso que tantos aborrecimentos me tem trazido pela tagarelice de Laura, a quem o contei, e que o repete por aí, a todo o mundo.

E crença que D. Juan de Maraña, encontrando-se, certa noite, com um saimento, perguntou a um dos que conduziam o esquife: '~ Quem era o morto?" E logo lhe foi respondido:

- É D. Juan de Maraña. Querendo o fidalgo verificar o que lhe dizia o farricoco e outros sinistramente repetiam, afastou o sudário e viu. Efetivamente: o defunto era ele. E tal visão foi que o levou ao arrependimento. Pois comigo a coisa foi num bonde. Eu vi-me, como te estou vendo; a mim, entendes? a mim! Como explicas tal coisa?

- Essas coisas, meu amigo, não se explicam: registam-se, são observações, fatos, elementos para a Ciência do Futuro, que será, talvez, Ciência da Verdade.